Monday 11 Aug 2008, 10:12am
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Catarse em ritual pagão
Não deve haver artista mais difícil de categorizar que Björk Guðmun
dsdóttir. Desde que enveredou por uma prolífica carreira a solo em 1993, depois do rompimento com os Sugarcubes, que tem trilhado um caminho sempre marcado pelo inesperado. Depois de um início estrondoso a conquistar os corações indie e o mercado mainstream, desde cedo deu para compreender que o propósito maior desta força da natureza proveniente das paisagens escarpadas da Islândia nunca se revelaria o mais acessível. Depois da sublimação pop de Debut e Post, algo mais começou a emergir. Inicialmente com a exacerbação apaixonada de Homogenic passou para o completo oposto com a quietude sublimada de Vespertine, apenas para voltar a chocar – talvez mais que nunca – com a rispidez visceral e carnal de Medúlla. No seu último passo em direcção a uma imortalidade já conquistada, apresentou-se com Volta, um distinto chamamento peregrino do centro da própria Terra.
Os espectáculos de Björk sempre foram visualmente e conceptualmente arriscados. Quando passou em 1996 pelo Coliseu dos Recreios a sonoridade industrial, suja e agressiva, nunca deixaria adivinhar que enveredaria mais tarde numa tourné pelas casas de ópera do mundo, como se de uma compositora de chamber music se tratasse e que, logo a seguir, reunisse ambos os mundos aquando da revisão de carreira, que os Portugueses tiveram a oportunidade e a satisfação de presenciar no Meco há cinco anos. Mas nada parece fazer mais sentido do que o conceito de Volta quando é concretizado ao vivo. É aparentemente o mais simples trabalho de Björk desde Debut, mostrando uma artista, que na sua presente maturidade, não desiste de descortinar mais uma das suas inúmeras e quase esquizofrénicas facetas. Como um mensageiro dos deuses antigos, Björk entrou no palco do Sudoeste a revelar à partida, e com Earth Intruders, o imenso espectáculo de cor, luz e emoções totalmente inadulteradas que se iria vivenciar. Não há aqui espaço para a racionalização, tudo é radicalmente instintivo.
Mesmo antes de entrar em palco, o decateto de metais no feminino – as Wonderbrass, todas elas islandesas – avançava para os seus lugares enquanto fazia ecoar pelo recinto uma marcha sem nação e a preconizar os inúmeros rituais heréticos que iriam ter lugar na Zambujeira do Mar. Trajadas com cores garridas, bandeiras acopladas e pinturas bélicas eram como múltiplas vozes que se reuniam numa só: na de Björk, vestida como uma princesa amazona dos tempos modernos, com todas as cores do arco-íris a flutuarem da sua saia e com um bizarro adereço que lhe cobria a cabeça. A sacerdotisa impunha assim a sua presença e convocava para si as hostes, que poderiam entrar cépticos mas sairiam certamente crentes. Esta comunhão existe num espaço muito para além do religioso e o alinhamento que escolheu para esta noite foi perfeito e mais que adequado à missa degenerada que foi o seu concerto. Em Hunter mostrava-se ainda a apalpar terreno, enquanto as batidas predatórias embrenhavam-se nas almas mais desprevenidas e ela mesma deixava rolar das suas mãos uma densa chuva de fitas. Com a dorida Pagan Poetry sentia-se já a aproximação de uma rendição, que se mostrou completa quando certamente fazia cair as primeiras lágrimas de absolvição com a dilacerante All is Full of Love. Assim se sentiu o aterrar da entidade que se tinha conjurado.
Depois disto soltou-se mais do que é habitual, mostrando-se receptiva à calorosa e desembrenhada recepção que o público lhe oferecia. Era afinal de contas o penúltimo espectáculo de um itinerário que começou em Abril de 2007. A quase infindável tour reforça aquilo que se vislumbra em palco, uma tribo nómada sem destino estabelecido, que deixa um bocado de si em todos os sítios que visita e celebra. A acompanhar Björk estão também Mark Bell, companheiro de longa data e co-produtor de alguns dos seus melhores temas, nas misturas, Damian Taylor, nos efeitos sonoros e condutor da maravilhosa engenhoca Reactable, o amigo Jónas Sen nas variadas teclas e o aclamado Chris Corsano na bateria.
Após a entoação da belíssima Pleasure is All Mine, que tal como quase todas as mais anciãs canções teve direito a novas roupagens, ajustadas aos emblemas do espectáculo, chega um dos mais sublimes momentos que o Sudoeste teve oportunidade de presenciar. Björk ausenta-se para as Wonderbrass tomarem o centro do palco e arrebatarem uma multidão silenciosa com Overture, numa comovente alusão a Dancer in the Dark. Logo a seguir retorna para junto delas para apresentarem uma despida e hipnotizante versão de Immature, com a indomável voz de Björk, simultaneamente frágil e irredutível, a provocar reacções imediatas a cada nova vocalização. Podem-se contar pelos dedos os intérpretes que conseguem impregnar cada nota de uma panóplia infindável de sentimentos e ela faz certamente parte desse restrito grupo.
Enquanto esperava pela chegada de um convidado muito especial, depois de I Miss You e Who Is It, entretinha-se divertidamente a interrogar o público no meio de inúmeros e floreados “Oprrrrigados”. Esse convidado era Toumani Diabaté que intitulou de rei da kora, instrumento de múltiplas cordas, proveniente do Mali que com ela protagonizou um dos mais belos momentos da noite com Hope, uma acutilante balada primitiva, que com o virtuosismo de Toumani e os rasgados sorrisos de Björk, todos conquistou.
Estes momentos mais íntimos, partilhados com cerca de vinte mil pessoas, como o religioso Vökuro, a paisagística Wanderlust, e o emotivo retorno a casa de Anchor Song já no encore, eram intercalados com as mais puras descargas de energia. Começou com Army Of Me, esse hino de guerra que parece estar mais forte e ressonante que nunca, e que fez pela primeira vez o mar de gente tornar-se alucinantemente revolto. Mas ainda assim nada poderia augurar o que viria a acontecer no final. A romanticamente suicida Hyperballad começa com a doçura de sempre, com Björk inclusivamente a deixar o público cantar parte da música, mas o crescendo habitual é violentamente paralisado pelo perturbador irromper de um perverso beat de Mark Bell. Aqui todo o espaço circundante pareceu dissolver-se repentinamente para dar origem a uma rave espacial capaz de aniquilar galáxias inteiras. Algo que continuou a elevar-se com a chegada de (a) Pluto, com as suas batidas apocalípticas carregadas de desgarrada energia bélica. A acompanhar um poderoso ”headbanging” colectivo, Björk juntava-se ás suas Wonderbrass numa coreografia ritualista.
Mas a fatal exaustão só se poderia fazer sentir depois da última música do encore, Declare Independence, um dos temas maiores de Volta. As anteriores dedicações ao Kosovo e ao Tibete causaram controvérsia na China e impediram-na de se deslocar à Sérvia. Mas em palco o mito é outro e tremendamente pessoal. Num palco recheado de bandeiras sem nacionalidade nem associação, Björk, numa atitude neo-punk totalmente combativa, exigia que se erguessem as bandeiras mais alto. As bandeiras de um individualismo conquistado, sinais da emancipação que tinha acontecido. E numa celebração inominável a explosão derradeira deu-se com toda a pompa imaginável. Os saltos eram cada vez mais altos, os confettis celebrativos inundavam a multidão enquanto esta gritava com toda a sua alma, respondendo ferozmente aos rituais pagãos convocados. Depois desta experiência extracorporal assombra-nos a percepção que não existiam deuses extraterrenos presentes nesta cerimónia. A única coisa que Björk fez venerar foi a identidade de cada um. Independência declarada… eterna e inabalável.
Nuno Gonçalves
O Homem Que Viveu Duas Vezes
Prelúdios e Fugas